Foi quando ela começou a ouvir. Uns ganidos distantes. E
correu, passou por Miguel como uma bala. Correu até encontrar. E encontrou. Na
única parte iluminada daquele galpão, havia uma caixa. Miguel sorria como
criança:
- Quando eu era mais novo, meus pais e eu cuidávamos de um
canil. Isso foi antes da fome, da doença do alcool. Eu passava horas brincando
com os filhotes e lembrei que isso me deixava feliz. Então, hoje de manhã,
enquanto ia para escola, ouvi uns gganidos bem baixinhos. Eram esses
camaradinhas aí. Sua mãe fora morta por algum vagabundo. São orfãos como eu. Pensei
que você gostaria de me ajudar. Não tenho pra onde levá-los, mas acho que se
cuidarmos bem, podemos doá-los para algum canil, ou mesmo famílias. E eles não
vão crescer nas ruas.
Melissa sorriu. Amava animais e era a única coisa que não
tinha em comum com Paulo. Pela primeira vez, desde muito tempo, não sentia dor.
Só sorria. Era como se o beijo e os filhotinhos tivessem despertado algo nela.
Não a antiga Melissa, morta e enterrada com Paulo. Mas algo novo, adormecido e
mais maduro estava acordando. Se esticava de forma manhosa dentro dela e fazia
cócegas em sua alma.
Enquanto apreciava aquela sensação e acariciava um dos
filhotes. Miguel puxou seu pulso direito e olhou por baixo da munhequeira. Com
um suspiro profundo, olhou nos olhos raivosos de Melissa e disse:
- Por favor, não se corte mais. Eu sei que dói, mas quando
você se machuca me machuca também. Vamos enfrentar isso juntos. Deixa eu ser o
motivo desse sorriso lindo e me ajude a cuidar desses bebês. Em troca, te
prometo não dar motivos pra chorar e se o fizer tentarei te fazer feliz, ou o
mais perto disso que eu conseguir.
- Sabe Miguel, acho que temos uma filha. Seu nome vai ser
princesa. Ela meiga e mansa como eu era, mas aperte sua patinha. Viu? Ela
mostra os dentes. É perfeita, uma mistura do que eu fui e do que eu sou. Quer
ser o pai dela?
Sorrindo, Melissa ainda pensa na dor que resvala os dedos na
fina e transparente membrana de felicidade que envolve seu coração. Ela luta
contra a dor que quer ir à tona e contra essa fútil e adorável sensação de
contentamento. Desde a morte de Paulo, a garota não sabia o que era sorrir
espontaneamente. Já não fazia brincadeiras como a que acabara de fazer.
Vendo o sorriso torto no rosto de Miguel, Melissa não teve
coragem de negar aquele momento tão ternamente oferecido por ele. Bobagem aos
olhos de fora. ‘São apenas cães’, eles vão dizer. Mas olhos brilhantes de
lágrimas pendentes da menina diziam muito mais que meras palavras. Era uma
promessa de recomeço. Iria ser dificil, mas, como os olhos brilhantes do
filhotinho no seu colo prometiam um mundo de descobertas, ela sabia que teria
que fechar os olhos e se lançar. Mas sabia que não estava sozinha. Ele estava
lá e estaria ali, bastava estender a mão.
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Kamila Mendes
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