quinta-feira, 30 de agosto de 2012

É uma loteria


Olhava trêmula para a luz bruxuleante da vela. O vento uivando violentamente lá fora não permitia que a sensação de segurança se instalasse. O tremor percorria todo o corpo de Anna. Abraçando as próprias pernas, a garota sussurrava baixinho: “Eles não acertam todas as casas, é como se fosse uma loteria do azar”. E assim permanecia repetindo, baixinho, como se fosse um segredo.

Não sentiu o sono se aproximando, a não ser quando, assustada, abriu os olhos e viu o raio de sol entrando por uma fresta que não existia na noite anterior. Escutou atentamente e teve medo. Nenhum som, nem de chuva, nem de vento, nem sirenes, nem choro. Ponderou se deveria se mover, tinha medo que no menor movimento de seu corpo tudo viesse abaixo.

Se levantou. Sentiu cada junta, cada músculo de seu corpo doer. Demorou um tempo até que se sentisse segura da firmeza de suas pernas. Jogou o peso de seu corpo sobre a perna esquerda, equilibrou-se sobre a direita e, quando se sentiu segura, continuou.

O rangido de cada degrau, sob seu peso, parecia um grito de alerta ecoando no vazio lúgubre do porão. Pé ante pé, como passos de bebê. Seu coração quase se rompeu do peito ao alcançar o alçapão que lhe separa do mundo lá fora. Ao segurar na corda grossa, que servia como maçaneta, respirou fundo, uma, duas, três vezes e, quando, por fim, tomou coragem, empurrou a tampa.

Foi como milhões de agulhas perfurando sua pele. O peso da realidade a assolava. Escombros em todos os cantos. Nem mesmo a estrutura ficou de pé. Ao seu redor, a destruição deixada pela noite de fúria da natureza. Não conseguia conceber a realidade. Andou pelos escombros, pisoteou telhado e piso, agora tudo misturado, sem muita distinção.

O sol brilhando, o dia claro e fresco, cheio de promessas não ditas parecia uma afronta a sua dor. Como se fosse desafiada a chorar, mesmo com tamanho espetáculo acontecendo diante de si. Mirou o sol e sua majestade até que seus olhos arderam. Fechou-os momentaneamente e só os abriu para olhar ao redor... Entre as carcaças do que antes eram casas majestosas, apenas uma pequena casa de madeira continuava em pé.

Ironia do destino. A única casa não digna daquele luxuoso bairro foi a única a sobreviver a um furacão. Dois quarteirões de espetaculares mansões reduzidos a restos, enquanto a pequena e suave casinha ficava em pé. “Eles tinham razão! Os tornados não acertam todas as casas, é como se fosse uma loteria do azar!”

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Kamila Mendes

1 comentários:

vendedor de ilusão disse...

Olá,
Venho para, mais uma vez, agradecer a sua honrosa participação; nada me é mais gratificante. E ademais, devo lhe dizer que adorei esse texto, - achei magnífico, meus parabéns!
Tenhas uma ótima semana!
Um abraço e, quando puder, apareça.